O ANABATISMO EM ZURIQUE: DIVERGÊNCIAS, DESAFIOS E A VISÃO DE COMUNIDADE CRISTÃ

Caros estudantes, leiam o texto a seguir:

O texto pode ser lido em sua íntegra na seguinte obra: LINDBERG, Carter. História da Reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, cujo o tema da secção é “Os Anabatistas”.

Uma das regiões mais importantes para o desenvolvimento do anabatismo foi Zurique, cidade de Zuínglio. No entanto, pesquisadores já estabeleceram que a região não foi a única origem do movimento anabatista (Deppermann et al., 1975). A diversidade do movimento também surgiu da reforma radical de Thomas Müntzer na Alemanha central, implementada sob condições distintas na região sul do país por Hans Hut, bem como a partir do ambiente carismático-apocalíptico de Estrasburgo, sob a influência de Melchior Hoffmann.

As ideias escatológicas e espiritualistas de Hoffmann influenciaram desenvolvimentos nos Países Baixos e no norte da Alemanha. As diferenças entre os movimentos podem ser ilustradas pela reivindicação de Balthasar Hubmaier, reformador anabatista de Waldshut (Floresta Negra) e Nikolsburg (Morávia). Hubmaier afirmava que a instrução de seu batismo se diferenciava do ensino de Hut “como céu e terra, oriente e ocidente, Cristo e Belial” (Goertz, 1988, p. 15).

Já vimos como o programa reformista de Zuínglio dependia da persuasão das autoridades e estava sujeito às ameaças dos cantões católicos. No século XVI, estava claro para quase todos que comunidades sem uma ideologia comum não apenas estavam à mercê de sociedades unidas — como os turcos — mas também sujeitas a uma guerra civil, que colocaria em risco a própria existência do Estado.

Aos olhos de Zuínglio, o surgimento dos anabatistas em Zurique representava um perigo real e imediato. Para o Reformador suíço, esses evangélicos eram vistos como extremistas briguentos, invejosos, traiçoeiros e hipócritas, sem amor e insubmissos ao governo. Os anabatistas, que se opunham ao batismo infantil e pregavam ao ar livre, discutiam pelas ruas e faziam discursos inflamados, manchando a reputação do evangelho. De fato, Zuínglio os via como revolucionários sociais cujo ensinamento acabaria tanto com a sociedade quanto com a religião.

Aparentemente, a controvérsia central girava em torno do batismo infantil; no entanto, por trás da discórdia, estava uma visão diferente de cristianismo. Lutero e Calvino concordavam que havia apenas uma única Igreja Católica (ou seja, universal), com um único credo, e, juntamente com outros reformadores, entendiam que a Igreja visível coexistia com a comunidade local, na qual as pessoas deveriam viver e adorar em harmonia.

Contudo, embora os anabatistas também compartilhassem dessa visão inicialmente, com o tempo não conseguiram transformá-la em realidade (uma das raras exceções foi Waldshut, na Floresta Negra, sob a liderança de Hubmaier). Podemos afirmar que o afastamento social dos anabatistas decorreu da falha do movimento em alcançar o corpus Christianum que desejavam, ou seja, uma comunidade à sua imagem. Em outras palavras, Zuínglio e outros radicais de Zurique lutavam formalmente para fundar uma comunidade cristã; afinal, o convexo não é nada mais que o inverso do côncavo. Entretanto, os anabatistas, não conseguindo persuadir a comunidade como um todo, voltaram-se para membros voluntários de congregações locais que se viam totalmente separados do Estado.

Esse rompimento radical com o establishment cristão tem sido caracterizado como “cristianismo plano”, um tipo de cristianismo “dotado de lealdades corporativas e disciplinas internas que não caracterizam um Estado e, ao mesmo tempo, o transcendem, um cristianismo caracterizado pela busca da santidade e separado do mundo” (Williams, 1992, p. 1279, 1286–7). Os adeptos do anabatismo escrutinavam os membros para eliminar aqueles considerados indignos, cultuavam e se associavam mutuamente em comunidades separadas e voluntárias, formando assim um tipo de comunidade alternativa.

Para eles, a única verdadeira Igreja consistia apenas em cristãos verdadeiros, avaliados por testes de conduta e crença. Aqueles que não correspondessem aos padrões de filiação deviam ser excluídos da comunhão e banidos. Os adeptos do movimento ofereciam uma alternativa radical às “igrejas-Estado” dos luteranos, zuinglianos e católicos, que acreditavam que a Igreja visível englobava todos os cristãos professos.

O desenvolvimento anabatista em Zurique serve para instruir uma percepção mais ampla desse movimento reformista. Zuínglio e os magistrados suíços viam três perigos no movimento anabatista. Primeiro, os anabatistas eram vistos como um grupo que, de modo consciente e deliberado, corrompia os princípios sociais e religiosos de Zurique e das aldeias ao redor — um perigo tanto para a unidade nacional quanto para o sucesso da reforma de Zuínglio. Tanto em Zurique quanto em outras cidades, o sucesso no movimento reformista dependia do apoio do governo. Temerosos com relação à possível agressão de cantões católicos, Zurique e outros cantões reformados acreditavam que apenas uma comunidade unida na religião seria capaz de se defender e manter sua liberdade. Assim, na medida em que os anabatistas impediam essa união, eram vistos como cúmplices de uma Contrarreforma.

Em segundo lugar, os anabatistas usaram a arma de Zuínglio, a Escritura, contra ele, da mesma forma que Karlstadt e Müntzer haviam feito contra Lutero. Para seu desgosto, os reformadores começaram a perceber que a mesma determinação e dependência leiga que incentivavam contra a Igreja romana poderia ser voltada contra eles. Os dissidentes insistiam que estavam apenas preservando o compromisso de Zuínglio com a Bíblia como norma de fé e conduta e que sua interpretação levava a conclusões lógicas. Ao lê-la, não conseguiam encontrar nada que justificasse o batismo infantil, mas apenas o batismo de adultos como sinal de fé e regeneração.

Tampouco encontravam mandamento na Escritura que fundamentasse a união entre Igreja e Estado. Em sua leitura do sermão do Monte, os dissidentes acreditavam que os cristãos deviam literalmente se separar do mundo. Assim como Lutero, Zuínglio também ficou surpreso ao ver como seus seguidores liam, de forma tão diferente, o texto bíblico que ele tanto se esforçara para lhes tornar acessível.

Tanto Zuínglio quanto os anabatistas aceitavam a mesma Bíblia e concordavam que tradição e autoridade humana deviam ceder à Palavra de Deus; da mesma forma, ambos acreditavam que a Escritura era perfeitamente clara quando lida sob a direção do Espírito Santo, em fé e amor. Obviamente, Lutero e Zuínglio insistiam em chamar de “fanáticos” aqueles que discordavam de sua posição; por isso, Zuínglio via a leitura alternativa que os anabatistas faziam da Bíblia como uma expressão de ignorância, malícia e controvérsia. Por outro lado, tal dissonância era, da perspectiva católico-romana, a caixa de Pandora que os próprios reformadores abriram.

João Maier, controversista católico, ridicularizava a oposição do Reformador de Zurique aos anabatistas, pois, segundo ele, o próprio Zuínglio era o originador do movimento: “Como Zuínglio está, agora, próximo dos anabatistas […] aos quais, não obstante, atormenta até a morte […] e tortura, membro por membro” (Gerrish, 1992, p. 253). Havia uma percepção generalizada na época de que os anabatistas eram essencialmente zuinglianos — ou ao menos uma consequência lógica da interpretação zuingliana dos sacramentos como um ato público de confissão de fé. Acerca dos dissidentes, o próprio Zuínglio admitiu: “Saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos” (1 João 2:19; Locher, 1979, p. 261).

Em terceiro lugar, os anabatistas eram vistos como exclusivistas políticos e religiosos, e, portanto, uma ameaça pública. Recusando-se a aceitar obrigações normais dos cidadãos — como juramentos, impostos (dízimo) e serviço militar — caracterizavam-se como grupos cujo propósito era formar um Estado dentro do Estado. O fato de os anabatistas se oporem ao juramento aumentava ainda mais essa percepção, pois, para a sociedade medieval, a prática era em grande parte a “cola” que mantinha a sociedade unida. Cidadãos juravam pelo bem comum da cidade e sua defesa; também juravam às guildas às quais pertenciam e à verdade. O perjúrio, com sua suposta punição divina, era algo detestado. Sem o juramento público, indispensável em qualquer corte judiciária, a administração da vida pública corria o risco de desmoronar: a recusa em prestar juramento era vista como separatismo político.

A recusa ao pagamento de dízimos, como nos casos de iconoclastia e os ataques à missa, representava a desintegração da antiga ordem religiosa. Até certo ponto, a rejeição dos dízimos e impostos foi muito similar à insistência impopular da Igreja Católica em relação à isenção fiscal e à sua participação nos tribunais civis. De forma semelhante, a insistência anabatista em uma Igreja composta por cristãos verdadeiros e sua reivindicação de poder banir e excomungar membros levaram as pessoas a associar o movimento dissidente ao catolicismo.

Como toda essa questão foi rotulada de forma pejorativa sob o termo ‘anabatista’, torna-se útil explorar o que exatamente os diversos grupos reformistas acreditavam estar em jogo nesse entendimento alternativo sobre o batismo.

O texto pode ser lido em sua íntegra na seguinte obra: LINDBERG, Carter. História da Reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, cujo o tema da secção é “Os Anabatistas”.

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